Não posso te ver, não sei sequer se outros podem, não obstante, minhas razões são distintas. Como o senhor bem sabe, não tenho olhos. Se os tenho, são imprestáveis. Trancada estou em um infindável quarto escuro, tão vazio quanto se pode ser. Oh sim, estou presa no quarto escuro que sou, e na frieza dos cubos de gelo das pontas de meus dedos, quando vêm deslizar sobre minha pele buscando, entre a poeira pueril, partes ínfimas de uma sensualidade que, convenhamos, sequer existe.
Oh sim, basta olhar para mim para constatar. Eu, que jamais o fiz, sei bem. Sou apenas um pedaço pequenino de nada. Então, venho por meio destas palavras ocas, fazer-lhe um pedido. Não, não um pedido, um imploramento. Oh, Senhor Curiosidade, eu lhe imploro: dê-me algo de interessante. Algo de curioso. Algo que faça as pessoas, de fato, olharem para mim. Algo que as faça sorrir, que as intrigue.
Tudo bem, tudo bem, sei que não posso te enganar, então vou contar-lhe a situação toda. Bem, é tudo sobre Valentim. Com mais frequência do que eu desejaria, meu pai ordena-me que não me aproxime dele. Ele está preso nas masmorras. Nas celas outrora escuras e fétidas que, de alguma forma, agora têm cheiro de rosas. Tenho ouvido a estória da boca dos camponeses, e sei porque ele está lá. Ele acredita no amor. Oh, Senhor Curiosidade, isto não é curioso? Valentim acredita no amor, e morrerá por isso.
Nosso Rei (vida longa a ele!) insiste que amar é um crime. Então diga-me, Senhor Curiosidade, por que eu não estou jogada ao léu de uma das celas das masmorras? Sim, eu amo. Amo com todas as forças vãs de meu pequenino corpo coberto de nada. Sei que o amo. Amo Valentim, pois ele é o amor, e – veja que curioso – eu amo o amor!
Oh, Senhor Curiosidade, agora eu ouço alguém me chamar. Mas não vá embora. Sei que o Senhor tem diversos assassinatos felinos e felpudos a realizar, mas isto é de extrema importância. Não me demoro. Não vá embora, Senhor, por favor.
...
Senhor Curiosidade? Ainda está aqui? Oh, eu menti mais cedo para o senhor. Menti ao dizer que meus olhos são imprestáveis. Na realidade, eles servem de abrigo às cristalinas lágrimas azuis que agora percorrem minha face. E o fazem devido às palavras escuras que acabei de ouvir: Valentim irá para a guilhotina ao amanhecer.
Diga-me, Senhor, são minhas lágrimas realmente azuis? Ou elas são negras, como a minha alma? Não que eu saiba o que realmente seja azul, ou o negror. Não vejo as cores. Sinto-as, todavia. Cada qual em sua sintonia e frequência. Assim como sinto Valentim ao passar em frente à sua cela. Bem como ouço seus sussurros, ou sinto seu perfume de rosas.
Pode ser que eu não ter olhos seja coisa do destino. Assim como o coração de nosso Rei ser tão frio. O destino é curioso, e o Senhor sabe muito bem disso, não é? É de partir o coração que Valentim esteja agora em sua cela, esperando lentamente sua morte. Mas, de outra maneira, eu nunca o conheceria. E ainda assim, se pudesse vê-lo, nunca o notaria. Diga-me, Senhor, isto tudo não é curioso? Oh, não imagino como poderia viver sem conhecer Valentim, sem conhecer o amor.
Pergunto-me onde ele está agora. Não seja bobo! Sei que ele está em sua cela. Digo, onde estão seus pensamentos? Será que ele pensa em mim? Será que ele realmente sabe quem sou? Será... que... ele... me... ... ...ama?
Que seja, não faz diferença agora, faz? Tudo acaba amanhã. Oh, Senhor Curiosidade, poderia o Senhor levar embora consigo toda essa tristeza que esfarela meu coração? Por favor?
Tudo bem, sei que o Senhor é atarefado. Mas tenho um último pedido a fazer. Ontem à noite, enquanto passava pela cela de Valentim, ele me entregou esta carta. O Senhor poderia lê-la para mim? Oh, obrigado Senhor Curiosidade.
E no quarto escuro que era, a pequenina ouviu o soar das palavras:
“ Eu te amo.
De seu Valentim.”
E, de repente, ela já não era mais um pedacinho de nada.