11 de out. de 2017

violência




a primeira vez que segurei na mão de outro menino em público eu senti medo.
ele me disse: a gente vai apanhar aqui, menino.
soltamos as mãos.
estava no ponto de ônibus, pronto para ir embora depois de um dia que não tinha sido menos que especial. e de repente todas as risadas doces que trocamos, o toque trôpego da ponta dos dedos dele no meu ombro, a ânsia de saber todas as informações a seu respeito e a estranheza nova de não saber direito onde colocar as mãos enquanto nos beijávamos, todas essas lembranças manchadas pelo medo de apanhar aqui, menino.

todas elas são um borrão na minha memória.
mas vejo com clareza os olhares enviesados na minha direção enquanto subia no ônibus. e as minhas mãos tremendo enquanto sentava lá no fundo.
reprovação. sem saber direito o que tinha feito, mas sabendo ao certo quem eu era.
quem eu sou. e quem eu sou faz a gente apanhar aqui, menino.

ele não olhou nos meus olhos ao dizer isso, como tinha feito questão de olhar o dia inteirinho.
olhou para baixo envergonhado, virando o rosto, com medo de enunciar e tornar real o fantasma do qual nós dois já sabíamos a existência.
uma memória tão bonita manchada por um medo que não me pertence. sobre o qual jamais poderei ter o controle.

desde então tenho ouvido que eu não preciso disso. ninguém precisa saber.
que eu posso ser discreto e ser feliz. você engana bem, nem dá pra perceber,
se você só se esforçar um pouquinho, você vai parecer uma pessoa normal.

todas as vezes é dos olhos baixos e envergonhados que lembro.
é da minha memória manchada que lembro.
e eu não me perdoo em nenhuma dessas vezes, nenhuma delas,
por ter deixado algo tão bonito ter ficado roto, não me perdoo,
podre
manchado
pelos olhares de quem eu jamais tinha visto
e jamais verei de novo, não me perdoo,
e pelo medo de apanhar aqui, menino.
eu não me perdoo
um medo que não é meu,
não me pertence,
não.
me.
perdoo.

batam-me na cara.
façam escorrer-me o sangue todo.
deixem-me os olhos roxos, até não poder mais enxergar.
arranquem todos os dentes da minha boca. um por um.
dolorosamente. sentirei a pungência dessas dores todas.
cada uma delas. vão em frente.

mas não me impeçam de ser quem eu sou.

a essa violência eu não me submeto.

7 de set. de 2017

jorge se protege com o que não diz.

jorge se protege com o que não diz.

veste-se de meias promessas
que nunca serão cobradas
porquanto não deixam de existir
tampouco serão elas realizadas

jorge se arma de silêncio

jura amor mas de dentes cerrados
e quando o barro vira cimento
na culpa de um sentir violento
entre dentes jura jamais ter jurado

jorge não mente

é honesto e está ciente
que mentiras não contadas
mentiras não são

mas jorge sabe e sente

que os talvezes que planta
qual doce em boca de criança
vira cárie, viram lição


25 de jun. de 2017

ciranda

encontrei-o na esquina da vida
feito espelho perdido feito eu
encontrei-o alma e fé perdida
e olhos da esperança partida
qual dia que um dia anoiteceu

tomou-me a mão e corremos
para onde nunca vou saber dizer
mas foi tanto que nos perdemos
perdidos já éramos nem percebemos
tamanha foi a vida que nos ocorreu

então espetou-me os olhinhos pequenos
e enviesado num sorriso sereno
cantou-me a sua súplica por ar

e espelho que sou fui-me derretendo
e de ir entendendo mal percebemos
que já estávamos imersos no mar

agora que faço eu, criança sozinha?
aguardo inerte em água fria
esperando rebelde pelo dia
em que chegue teu afogar?

ou vou embora e imagino
o cruzar do teu braço pequenino
e o franzir do teu cenho franzino
enquanto se recusa a nadar?




25 de mai. de 2017

Brave


brave
are the flowers
that are ripped
shattered
cut
so tiny
and still remain
unapologetically kind.

5 de mai. de 2017

jorge

jorge tem um hobbie
é um tempo sagrado depois do expediente em que
desejoso, fecha os olhos e sonha
sonha com o dia em que tudo fosse diferente

se eu fosse maior melhor
ele pensa
mais rico mais magro
tivesse um carro um carinho um amor um afago
se essa cadeira fosse mais confortável
se esse emprego fosse mais confortável
se essa pele fosse mais confortável
se eu não dormisse pensando no que eu podia ter dito
e vendo a reprise de friends todo esparramado
porra, se eu tivesse nascido bonito
e não fosse covarde
ia ser tudo tão mais fácil

se eu jogasse tudo pro alto e
rodasse esse mundo e
entrasse pra uma banda de rock e
e cantasse as palavras certas num refrão bem agudo e
tivesse um cabeludo no fundo tocando um baixo
se eu fosse compreendido reconhecido  e
se eu fosse amado
ia ser
tudo
tão
mais fácil

jorge tem um vício
é um tempo sagrado
em que depois do expediente
põe-se embriagado
das coisas ausentes.

enquanto suas plantas murcham
e os dentes amarelam
e os ouvidos não ouvem
e os olhos não veem
e os passarinhos continuam cantando de manhã
os carros correm e o vento sopra
e dona maria da padaria dá bom dia
quando jorge passa
e cumprimenta o cãozinho vira-lata
que tem aquela carinha de cê não tem comida aí não?
e as gentes importantes apertam as mãos
e contam piada e ouvem a rádio
e param e andam e atravessam as ruas apressados.

e a felicidade
encolhidinha
num canto escuro
não morre:
é um pézinho
murcho de planta
que resiste
na varanda
do apartamento do jorge.

5 de mar. de 2017

Narcisos.

se você vem,
que venha pequeno
por aqui tudo grande é efêmero
e sinto falta de ser só
sinto falta de ser só silêncio.

se você entrar,
que entre pela porta
mas não esquece o caminho de volta
e que a rua às vezes é torta
e que a noite é escura e fria

que às vezes o sorriso é largo,
mas os olhos são vermelhos:

pois então,
de quem é essa aprovação
que você procura no espelho?

meu reflexo não sorri já tem tempo:
quando não tem ninguém vendo
encolhe a barriga, vira de lado
e morde o lábio todo quieto, calado

meu reflexo não sorri tem tempo
se finge desatento, mas não me engana
pra dormir passa gel no cabelo
e corre pra cama tecer seu apelo

gente, é sério
cês vão me amar
mesmo quando eu tiver feio?

pois então,
de quem é essa aprovação
que você procura no espelho?

24 de jan. de 2017

autobiografia

só existo depois de cuspido
mastigado por mentes amarelados
feito história deglutido ingerido

navegando no sistema digestório do mundo
deslizando pelas mazelas delgadas
desse intestino sem fundo

é só então que viro história
aubiografio o outro que não fui
me crio, me recreio, garganta e peito abertos
só existo pra contar história

nunca sou
sempre estou sendo
sou escritor incompreendido
vivo mil vidas
e escrevo obras-primas que ninguém gosta

grande coisa
no final

tudo vira bosta.