existe um poema não escrito
acomodou-se no escuro intocável
agora rosna e mostra
os dentes pontiagudos
sempre que ansioso e aflito
o tento escrever
há um poema turvo
que nunca tomou forma
mas que chora copioso
anuviado
as tintas as dores os amores
todos muitíssimo bem guardados
há um poema bravo
com muitos dedos para apontar
há um poema calmo
qual deriva em alto-mar
há um poema alto
crescido e longilíneo
que se recusa a ser domado
poema que ao parto
abandonado
fez-se farto
em se fazer sozinho
dele escorrem rimas infantis
velhas fotografias de família
filmes, livros, músicas
dele caem cacos de mim
pétalas de outrora
e pegadas de uma eterna busca
dele grita o SILÊNCIO
e o talvez
dele escorregam alguns sempres
e transborda a pequenez
existe um poema não escrito
no fundo da minha gaveta de meias
existe um poema bem bonito
que vem escrevendo a si mesmo
desde que o deixei para depois
ele não espera
um nome
não espera um verso
nem uma rima ele implora
ele não colabora
não é manso
esse poema nunca que vai embora
ele fica ali
com os olhinhos medrosos
desconfiados
sempre à espreita
disposto a atacar
quando na violência dos dias
vou esquecendo de ser poesia
o poema surge aos brados
por cortesia
só
para me lembrar.