3 de jun. de 2020

# 3 (forças, plural)





Eu sou um homem que fez as pazes com a sua solidão.

Nascemos amigos, é bem verdade, mas em algum momento ao longo do caminho, a situação mudou.

É difícil amar um homem que não tem medo de estar sozinho, ouço quando as noites são frias. Ficar deixa de ser preciso, e passar a ser quero. A pungente necessidade irrevogável que sobe o estômago feito bile dá espaço a uma simples descarga elétrica de neurônios que dão as mãos em acordo para decidir que sim, o que queremos é ficar.

O amor deixa de ser o último drinque do Starbucks com chantili e cereja na ponta, e passa a ser aquilo que despejamos às pressas na caneca pela manhã, com a cara amassada e o cabelo despenteado.

Meu amor não é um croissant em frente à torre Eiffel, meu amor é pão com manteiga. Todos os dias. O suntuoso combustível que me toca a língua paulatinamente e lubrifica as engrenagens enquanto calço o sapato para ir trabalhar.

Meu amor não é destino, não é final feliz, não é condição avassaladora que toma de assalto e incendeia as concupiscências da alma. Meu amor é uma decisão cotidiana. Uma escolha a ser feita dia após dia.

Amor e solidão aqui dentro são dois irmãos, que não conseguem ficar no mesmo cômodo por muito tempo sem sair nos tapas. Foram condicionados a acreditar que são a antítese um do outro. Que sua própria existência ameaça a existência de seu irmão, e vice-versa. Absolutamente. Quando se abraçam e fazem as pazes, entretanto, e ainda assim escutam a trilha sonora que diz que o amor é fundamental, mas que é impossível ser feliz sozinho, ambos torcem o nariz como se fossem reflexo um do outro. O amor vacila. A solidão cede.

A solidão me faz forte, eu digo. Minha força está na solidão e não tenho medo. Nada pode me machucar. O amor escuta, entorta a cabeça e abre os braços em acalanto para dizer: ô, criança, vem cá – o que mais você tem medo é de se machucar.

É impossível difícil amar um homem que está em paz com a sua solidão, escuto não obstante, porque não é o deslumbre da sexta-feira à noite que entorpece, mas a languidez do meio-dia de domingo. Abraça a própria sombra. Está tudo bem se não vieres. Ficar não é necessidade, é escolha.

31 de dez. de 2018

jaula

prendi um momento numa gaiola de píxeis:
agora ele sorri pra quem passa
pra quem deixa like
ele sorri sem graça
com graça
como convir
ele sorri

ele tira o chapéu, educado
cumprimenta, dá bom dia
ele deixa ir o apressado
e ao atento ele troca
um afago ele troca
uns olhares de cortesia

mas é só apagar as luzes
que vou limpar sua gaiola,
e copioso ele chora
quero ir embora ele chora
e embora não haja embora
ele diz não demora
e chora
ele chora eu quero ir

agora o momento faz greve de fome
e é sempre agora

no transluzir da aurora
o momento vai virando memória
e num museu de fósseis
ele ganha etiqueta
num museu de fósseis
ele perde o nome

o momento virou cadáver.

e a tatuagem no peito
do lema
fica pra mais tarde:
existe um abismo apenas
uma distância infinita e serena
entre o verdadeiro píxel,
a realidade pequena
e a derradeira carne

31 de mai. de 2018

permanente


entrai
nos calabouços
recônditos
de vossa própria existência

entrai no escuro da alma
sem pretensão de clareá-la
bebei do amargo
ao áspero apresentai o afago
apertai vossa própria mão
abraçai vosso próprio corpo
curai vossos próprios machucados

escrevei sobre vós na segunda pessoa
só porque soa lindo pra caralho

errai
e perdoai
vossos próprios pecados

entrai
nos calabouços
recônditos
de vossa própria existência

entrai
conhecei
repeti
e sejais
vós

pois vós sois
permanente
impermanência.


26 de fev. de 2018

existe um poema não escrito

no fundo da minha gaveta de meias
existe um poema não escrito

acomodou-se no escuro intocável
agora rosna e mostra
os dentes pontiagudos
sempre que ansioso e aflito
o tento escrever

há um poema turvo
que nunca tomou forma
mas que chora copioso
anuviado
as tintas as dores os amores
todos muitíssimo bem guardados

há um poema bravo
com muitos dedos para apontar

há um poema calmo
qual deriva em alto-mar

há um poema alto
crescido e longilíneo
que se recusa a ser domado
poema que ao parto
abandonado
fez-se farto
em se fazer sozinho

dele escorrem rimas infantis
velhas fotografias de família
filmes, livros, músicas

dele caem cacos de mim
pétalas de outrora
e pegadas de uma eterna busca

dele grita o SILÊNCIO
e o talvez

dele escorregam alguns sempres
e transborda a pequenez

existe um poema não escrito
no fundo da minha gaveta de meias
existe um poema bem bonito
que vem escrevendo a si mesmo
desde que o deixei para depois

ele não espera
um nome
não espera um verso
nem uma rima ele implora

ele não colabora
não é manso
esse poema nunca que vai embora

ele fica ali
com os olhinhos medrosos
desconfiados
sempre à espreita
disposto a atacar

quando na violência dos dias
vou esquecendo de ser poesia
o poema surge aos brados
por cortesia
para me lembrar.

11 de out. de 2017

violência




a primeira vez que segurei na mão de outro menino em público eu senti medo.
ele me disse: a gente vai apanhar aqui, menino.
soltamos as mãos.
estava no ponto de ônibus, pronto para ir embora depois de um dia que não tinha sido menos que especial. e de repente todas as risadas doces que trocamos, o toque trôpego da ponta dos dedos dele no meu ombro, a ânsia de saber todas as informações a seu respeito e a estranheza nova de não saber direito onde colocar as mãos enquanto nos beijávamos, todas essas lembranças manchadas pelo medo de apanhar aqui, menino.

todas elas são um borrão na minha memória.
mas vejo com clareza os olhares enviesados na minha direção enquanto subia no ônibus. e as minhas mãos tremendo enquanto sentava lá no fundo.
reprovação. sem saber direito o que tinha feito, mas sabendo ao certo quem eu era.
quem eu sou. e quem eu sou faz a gente apanhar aqui, menino.

ele não olhou nos meus olhos ao dizer isso, como tinha feito questão de olhar o dia inteirinho.
olhou para baixo envergonhado, virando o rosto, com medo de enunciar e tornar real o fantasma do qual nós dois já sabíamos a existência.
uma memória tão bonita manchada por um medo que não me pertence. sobre o qual jamais poderei ter o controle.

desde então tenho ouvido que eu não preciso disso. ninguém precisa saber.
que eu posso ser discreto e ser feliz. você engana bem, nem dá pra perceber,
se você só se esforçar um pouquinho, você vai parecer uma pessoa normal.

todas as vezes é dos olhos baixos e envergonhados que lembro.
é da minha memória manchada que lembro.
e eu não me perdoo em nenhuma dessas vezes, nenhuma delas,
por ter deixado algo tão bonito ter ficado roto, não me perdoo,
podre
manchado
pelos olhares de quem eu jamais tinha visto
e jamais verei de novo, não me perdoo,
e pelo medo de apanhar aqui, menino.
eu não me perdoo
um medo que não é meu,
não me pertence,
não.
me.
perdoo.

batam-me na cara.
façam escorrer-me o sangue todo.
deixem-me os olhos roxos, até não poder mais enxergar.
arranquem todos os dentes da minha boca. um por um.
dolorosamente. sentirei a pungência dessas dores todas.
cada uma delas. vão em frente.

mas não me impeçam de ser quem eu sou.

a essa violência eu não me submeto.

7 de set. de 2017

jorge se protege com o que não diz.

jorge se protege com o que não diz.

veste-se de meias promessas
que nunca serão cobradas
porquanto não deixam de existir
tampouco serão elas realizadas

jorge se arma de silêncio

jura amor mas de dentes cerrados
e quando o barro vira cimento
na culpa de um sentir violento
entre dentes jura jamais ter jurado

jorge não mente

é honesto e está ciente
que mentiras não contadas
mentiras não são

mas jorge sabe e sente

que os talvezes que planta
qual doce em boca de criança
vira cárie, viram lição


25 de jun. de 2017

ciranda

encontrei-o na esquina da vida
feito espelho perdido feito eu
encontrei-o alma e fé perdida
e olhos da esperança partida
qual dia que um dia anoiteceu

tomou-me a mão e corremos
para onde nunca vou saber dizer
mas foi tanto que nos perdemos
perdidos já éramos nem percebemos
tamanha foi a vida que nos ocorreu

então espetou-me os olhinhos pequenos
e enviesado num sorriso sereno
cantou-me a sua súplica por ar

e espelho que sou fui-me derretendo
e de ir entendendo mal percebemos
que já estávamos imersos no mar

agora que faço eu, criança sozinha?
aguardo inerte em água fria
esperando rebelde pelo dia
em que chegue teu afogar?

ou vou embora e imagino
o cruzar do teu braço pequenino
e o franzir do teu cenho franzino
enquanto se recusa a nadar?